FERDINANDO
Sinopse
Em uma antiga estação de trem em Limeira-SP, um homem se encontra em um espaço de atendimento burocrático. Há papéis, protocolos, e uma situação inesperada que precisa ser resolvida.
Uma alegoria poética sobre a condição brasileira contemporânea, onde a burocracia organiza não apenas a vida, mas também aquilo que deveria estar além dela. O filme destila uma brasilidade trôpega, tragicômica e, sobretudo, metafísica.
Ferdinando é um fragmento absurdo e poético, fincado entre o Kafka do posto do INSS e a delicadeza burocrática de um Beckett caboclo. Um filme sobre a vida como um desvio, um erro de protocolo, uma espera estendida pela falha do sistema.
A estação não é cenário. É metáfora que respira. O filme se passa onde tudo está pronto para partir — mas ninguém parte. Onde há trilhos, mas não há destino definido.
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Ficha Técnica
Fernando Sanches
Celso Lauro (Rafael)
“Out of the Blue”
Crítica
A câmera desliza em silêncio, acompanhando os trilhos. À esquerda da tela, um homem de olhos fechados sopra uma gaita. Não há pressa. Não há fala. Só o som longo de quem parece escutar o tempo, em vez de marcá-lo. O trem ainda não chegou. Mas o que se anuncia ali não é viagem, é suspensão.
É com esse plano-sequência que começa Ferdinando, curta dirigido por Maurício Sadalla Bucci e Fernando Sanches. O filme nos arremessa no intervalo — no espaço burocrático onde a vida, a morte e a máquina pública esbarram e negociam. Entre papéis, protocolos e erro de sistema, surge um Brasil que segue funcionando mesmo quando não funciona. Não há explicações excessivas. Não há apenas crítica. Há um gesto delicado de observação — como nos ensinaram os grandes: a arte não explica, produz conversas.
Na curva final de um país onde até a morte é atravessada por papelada, Ferdinando encontra na falha administrativa um estalo de humanidade. É uma obra que, sem gritar, nos deixa um rastro persistente: a vida segue — não por heroísmo, mas por teimosia. É um curta que encontra beleza no que cansa, graça no que atrasa, humanidade no que falha. E que, como poucos, consegue traduzir a experiência de habitar uma brasilidade trôpega, tragicômica e, sobretudo, metafísica.
Nada aqui é panfleto. Nada é panaceia. O curta é dialético, porque observa sem concluir por nós. O gesto é político porque é estético — e vice-versa. Ao fim, não há discurso salvacionista, mas uma fina ironia: de algum modo, seguimos em frente — às vezes pelo motivo errado, outras pelo motivo certo — quase sempre porque alguém carimba um papel dentro de um teatro que repete sempre o mesmo ato.
Mas atenção: esse curta não pode ser lido só pela sua "história". Aliás, história, aqui, é só o disfarce. O corpo do filme é outro. A matéria de que ele é feito são as dobras do tempo, os ruídos da imagem, os silêncios do enquadramento e a gramática visual que se desdobra num espaço onde o além-vida tem cheiro de repartição pública — uma alegoria trágica do que é nascer, viver e morrer num país viciado em carimbos e guichês.
Esse não é um filme "sobre" a morte. É um filme "em torno" dela. E, talvez, seja mais: é um filme sobre a vida como um desvio, um erro de protocolo, uma espera estendida pela falha do sistema. Aqui, morrer — como tudo no Brasil — também é esperar, também é protocolar, também é ser devolvido para resolver uma pendência. Uma ironia suprema: morrer é reencontrar a vida não como milagre, mas como prazo estendido por erro de digitação.
A estação não é cenário. É metáfora que respira. O filme se passa onde tudo está pronto para partir — mas ninguém parte. Onde há trilhos, mas não há destino. A câmera acompanha os personagens como quem anda em paralelo ao que não se move. E é nesse compasso — um compasso de dúvida — que o curta nos convida a ver não uma história, mas um país.Nele se reconhece na fila, no erro de sistema, na burocracia.
A trama é simples, mas seu sentido é denso. Um homem, Rafael (Celso Lauro), aparece num espaço de atendimento. Não sabe se está morto, se foi chamado, se chegou errado. Do outro lado da mesa, um atendente lê os papéis. O nome está certo, mas o número... há uma pendência. O sistema cometeu um erro. E por isso, Rafael terá uma reviravolta. É um gesto seco, sem drama. É o erro administrativo que permeia essa trama.
A estrutura narrativa ecoa Beckett: um homem, num não-lugar, é informado de que morreu. A resposta? "Deve ter algum engano." Já não estamos diante de um homem, mas de uma alegoria do brasileiro médio — o que sempre tem um CPF errado, o que não leu os termos e clicou em "concordo", o que resiste sem saber por quê, o que nunca sabe se morreu ou se ainda está esperando ser chamado.
Essa situação absurda carrega um paradoxo poderoso: a morte, que deveria ser o fim absoluto, é aqui uma questão de protocolo. E a vida, que deveria ser intocável, depende da digitação correta de um CPF. É essa a chave crítica do filme: ele não trata da morte como fim, mas como fila. E não trata da vida como plenitude, mas como formulário.
A morte aqui — ou melhor, o agente funerário do além — não usa foice nem manto negro. Tem cara de funcionário cansado, de camiseta de malha, um servidor público do outro mundo.
Ferdinando, entra como figura poética. Não é anjo, não é santo. É mais como um "funcionário cósmico", uma espécie de despachante espiritual. Mas é ele quem oferece o maior gesto de resistência simbólica: ao ver que houve erro no CPF. Aqui, o cinema encontra sua potência: um gesto mínimo que reorganiza todo o universo.
Ferdinando, vivido com notável interpretação por Ramon Donatti, é quem comunica essa decisão. Mas não decide nada. Seu carisma está na escuta. Ele não é o mensageiro do além — é o funcionário de um mundo intermediário, um operador da engrenagem que conhece o peso do erro e o trata com delicadeza.
Donatti faz do trivial uma epifania, sem gritar. É ele quem sustenta a poesia do filme: uma poesia feita de frases curtas, mas com ecos longos. Uma fala que parece vir de outro tempo, como se a própria morte, em vez de ceifar, apenas lembrasse. Sua presença é antiga e presente ao mesmo tempo. Sua fala nos leva ao interior da alma brasileira — essa que nunca sabe se está morta, viva ou apenas aguardando ser chamada.
Ferdinando não levanta a voz, não toma decisões grandiosas. Está ali. Sentado, em sua mesa em meio aos trilhos, onde antes se embarcava café e pessoas. Representa o tipo de figura que o Brasil produziu em excesso: o operador do sistema que já sabe que o sistema falha. E que falha, às vezes, para o bem. Há algo nele que lembra aqueles samurais do Kurosawa — a vitória está no gesto, não no duelo.
Sua fala é calma. Suas pausas são significativas. E isso basta para que o filme se construa não como alegoria de um além-fantástico, mas como uma radiografia da burocracia que organiza até a morte. Não se fala aqui de julgamento, de transcendência, de epifania. Fala-se de pendência, de protocolo, de sistema.
Rafael, por sua vez, interpretado por Celso Lauro, encarna o brasileiro que chega sempre perguntando se está no lugar certo, se é com ele mesmo, se não houve engano. Sua dúvida não é existencial — é administrativa. Ele não teme o destino. Teme a burocracia. E quem nunca? Sua perplexidade é nossa perplexidade. A mesma de quem, um dia, descobriu que até para morrer é preciso papelada em ordem.
A trilha sonora organiza esse ritmo com precisão: a gaita inicial, tocada por Mario Bucci, é respiro, é lembrança, é tempo que não anda. Não é trilha sonora decorativa — é sopro de um pensamento que ainda não tem nome. E quando Rafael "acorda", a música que entra — "Out of the Blue" — é um rock melódico que soa como despertador da vida adiada. A música vem da terra, e essa terra tem som. Tem trilho, tem motor, tem erro. É um Brasil que desperta com atraso — mas desperta.
O rock entra como um sopro elétrico, depois do silêncio inaugural. É a terra que chama de volta. Uma terra que fala com barulho — com trilho, com motor, com erro de cadastro. A trilha contrasta com a gaita do início, tocada por Mario Bucci com os olhos fechados, como quem sopra o tempo para dentro da cena. A gaita é respiro. O rock, movimento.
São duas músicas que organizam o filme: uma interna, reflexiva; outra externa, urgente. Entre elas, o corpo do espectador é convidado a acompanhar um ritmo de dúvida — um compasso de espera. A vida aqui não volta com fanfarra. Ela volta com som — e com a sensação de que alguma coisa ainda precisa ser resolvida.
A música, por sua vez, é uma chave extra para acessar esse mundo: suave, irônica, melancólica, ela parece sussurrar o que o roteiro grita. E o roteiro, aliás, é um caso à parte. Cheio de camadas: tem crítica social ("a vida foi toda assim, por que a morte seria diferente?"), metalinguagem ("você leu os termos ou só clicou em concordo?"), humor filosófico ("tá cheio de morto-vivo por aí") e um lirismo quase tolstoiano ("agora vá embora, que tenho muito trabalho a fazer").
A chegada de Rafael é marcada por música — "Out of the Blue", num rock melódico que, dentro do filme, funciona como despertador da vida adiada. Ele desperta não de um pesadelo, mas de um processo em aberto. São duas músicas que organizam o filme: uma interna, reflexiva; outra externa, urgente. Entre elas, o corpo do espectador é convidado a acompanhar um ritmo de dúvida — um compasso de espera.
Há, no roteiro, uma série de retóricas cotidianas que carregam ironia e lucidez: "Você leu os termos ou clicou em 'concordo'?". A fala diz o que o cinema mostra: vivemos por adesão, não por escolha. Sobrevivemos por conta de falhas do sistema, não por mérito. E é essa metalinguagem que transforma o filme numa crítica afetuosa da condição brasileira — afetuosa porque risonha, nunca cínica.
Há também no roteiro uma crítica finíssima ao modo como o brasileiro lida com o destino: espera-se que tudo se resolva por si, que alguém resolva. E se ninguém resolver — bem, talvez o tempo resolva. E se nem o tempo — talvez um erro, uma brecha, uma graça. O filme é, nesse sentido, uma versão espirituosa do famoso axioma de que "Deus é brasileiro". Em Ferdinando, Deus é o sistema — e está fora do ar.
E no fim da sequência, quando uma nova personagem entra em cena para "ser atendida", tudo se reorganiza. Não há surpresa. Não há revolta. O filme apenas indica que o ciclo recomeça. Não por castigo, nem por redenção. Mas porque o sistema segue. E se há algum gesto crítico aqui, ele não é contra a morte — é contra a forma como a vida foi sendo organizada como fila.
Quando uma nova personagem entra na estação — silenciosa, com a mesma dúvida — o filme não encerra. Recomeça. O ciclo se repete. E essa repetição não é falha narrativa: é estrutura crítica. Assim como em Esperando Godot, de Beckett — onde os personagens esperam por alguém que nunca chega — aqui, os personagens esperam por uma definição que nunca se conclui. Mas com uma diferença: em Ferdinando, o absurdo é nosso. Tem sotaque, tem prancheta, tem CPF. Tem aquela resignação brasileira que faz do atraso uma virtude e do erro uma oportunidade.
O grande gesto do filme é, portanto, não oferecer respostas. A arte não é para explicar — é para produzir fala. E Ferdinando fala. Baixo, calmo, em voz média. Mas diz muito. Diz que o tempo não é linha reta. Diz que a vida pode ser devolvida. Diz que, neste país, até a morte erra. E que isso — talvez — seja nossa única chance de recomeçar. Ou de, pelo menos, continuar esperando com dignidade..
Em Ferdinando, o tempo não corre. Ele circula. E é nesse movimento que o filme encontra sua imagem mais potente: a da vida como um processo sempre inacabado, sujeito ao erro, à devolução, ao reaprendizado.
A fotografia de Diego Giovani Bonifácio. Quase não há exibicionismo — o plano está ali para sustentar o corpo da palavra. Mas quando necessário, ele vibra: o campo aberto da estação, a luz que pousa sobre os rostos, o tempo suspenso. É como se o espaço estivesse à espera — não de uma resolução, mas de um entendimento. A imagem não explica: ela observa.
Ferdinando é também uma crítica metalinguística ao próprio ato de viver e morrer em sociedade. Uma espécie de Auto da Barca do Inferno pós-moderno, remixado com o teatro do absurdo e servido com sotaque do interior paulista. Não há heróis nem vilões. Há, sim, a maquinaria ridícula da existência tentando continuar rodando.
A força do curta não está em querer explicar a morte, mas em provocar perguntas sobre a vida. E este curta, com toda sua delicada ironia, nos faz falar, pensar, rir — e suspeitar que o nosso destino, por um erro administrativo do além, ainda pode ser reescrito.
Nada aqui é panfleto. Nada é panaceia. O curta é dialético, porque não propõe solução, apenas revela o conflito. E é poético, porque faz isso com imagens que valem mais do que mil interpretações. O homem não aceita a morte porque não sabe se viveu. O atendente não se importa porque é só mais um protocolo. E no fim, todos parecem cumprir um papel dentro de um teatro que repete sempre o mesmo ato.
E se há uma moral, ela é rodrigueana: não somos protagonistas do nosso destino. Somos figurantes de uma peça escrita por um autor invisível, cujo maior gesto de autoria talvez seja permitir que um erro no sistema nos devolva à cena.
No fim, ninguém embarca. Mas o trem passa. E no fundo da tela, alguém ainda sopra a gaita. Ferdinando é mais do que um curta. É um espelho — desses que não mentem, mas também não machucam. Um retrato afetivo, crítico e profundamente brasileiro de um país que não morre — apenas atrasa. Um país onde até o além tem fila. Um país onde, quem sabe, o céu seja uma estação de trem onde ninguém sabe se parte ou se apenas espera o próximo CPF. E nessa espera, curiosamente, encontramos algo parecido com a graça.